A biblioteca na guerra: experiências norte-americanas de defesa nos anos 1940
- Ana Claudia Vidal
- 21 de mar. de 2018
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O papel da biblioteca na guerra, que engloba as táticas e estratégias de defesa necessárias durante um grande conflito, provém de uma realidade que não é vivenciada invariavelmente por todos os países. Para os bibliotecários brasileiros, por exemplo, pode parecer difícil conceber o conjunto de atribuições demandadas em ocasiões tão atípicas. Isto porque, apesar da participação brasileira nas marcantes guerras da primeira metade do século XX, a experiência brasileira em tais eventos, em termos de impacto na sociedade e na vida cotidiana dentro do país, alcançou uma dimensão muito menor do que em grandes potências que estiveram presentes no centro do conflito, como os Estados Unidos, por exemplo. Nesse sentido, a perspectiva estadunidense trazida por Brett Spencer (2008) em seu artigo Preparing for an Air Attack: Libraries and American Air Raid Defense During World War II apresenta a atuação das bibliotecas em um contexto de guerra pouco familiar para o campo da Biblioteconomia e da Ciência da Informação no Brasil. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especificamente a partir da entrada efetiva dos Estados Unidos no conflito, uma série de medidas e ações de defesa civil foi levada a cabo por inúmeras bibliotecas americanas para salvaguardar o patrimônio histórico e cultural do país, preparar seu quadro de pessoal para as possivelmente necessárias ações de defesa civil e, ainda, dar suporte às comunidades locais na prevenção contra ataques, especialmente ataques aéreos.

Segundo o autor, antes mesmo da entrada dos Estados Unidos no conflito o presidente Franklin Roosevelt reconheceu as ameaças aéreas a que estavam sujeitas as bibliotecas do país (SPENCER, 2008, p. 128). Para salvaguardar seu patrimônio, as bibliotecas dos Estados Unidos adotaram diversas estratégias de proteção: a Library of Congress organizou a transferência de parte de suas coleções para bibliotecas distantes que ofereciam instalações seguras em uma mudança, segundo Spencer (2008, p. 129), sem precedentes na história das bibliotecas americana; os National Archives, por sua vez, ocupando o prédio melhor estruturado e mais resistente de Washington, promoveram o rearranjo de seu acervo de modo a alocar os documentos mais valiosos nos pontos da construção que ofereciam o abrigo mais seguro; a Harvard University Library elaborou um plano complexo para evacuação rápida de seus materiais em caso emergencial; já a University of Washington Library se destacou pela organização de um programa de coleta e armazenamento de manuscritos familiares naquele estado; muitas bibliotecas especializadas adotaram ainda medidas de microfilmagem de materiais que precisavam ser consultados com frequência e dos quais seus usuários não podiam privar-se (SPENCER, 2008).
Apesar de nunca ter ocorrido um ataque de larga escala em território norte-americano, durante a Segunda Guerra os Estados Unidos empreenderam medidas preventivas, modernizando e fortalecendo a defesa civil do país em um amplo esforço que foi conduzido em grande parte pelos bibliotecários. Fatores como o incentivo do Governo Federal, propriamente, e também de agências, órgãos e associações – como o Office of Civil Defense (OCD) e a American Library Association (ALA) –, além do envolvimento ativo das bibliotecas e de seu pessoal, permitiram a constituição de um sistema de distribuição de materiais sobre ataques aéreos que contava com os mais diversos tipos de impressos, como panfletos, manuais, livros, clippings de jornais, além de filmagens que serviam como suporte a programas de treinamento locais. Bibliotecários desenvolveram coleções especiais de informações de guerra e defesa aérea, trabalharam na elaboração de bibliografias sobre defesa civil, na organização de um sistema de classificação especializado e na constituição de cabeçalhos de assunto para a uniformização na descrição bibliográfica aplicada a essas coleções. Bibliotecas norte-americanas também se destacaram no estudo de Spencer (2008) por colaborarem entre si no processo de catalogação e por modificações na política de circulação de materiais que visaram facilitar o acesso aos mesmos. Conjuntamente, o serviço de referência se sobressaiu por oferecer suporte diretamente às comunidades locais ao prover informações sobre primeiros socorros, evacuação, técnicas de camuflagem, bombas, gases, entre outros tópicos. O oferecimento do espaço das bibliotecas para treinamentos de defesa aérea e workshops sobre temas correlatos e, inclusive, a preparação das mesmas para atuarem como abrigo oficial em caso de ataques também foram ações de valor reconhecidas pela sociedade americana naquele momento histórico, e que propiciaram visibilidade para as bibliotecas e estreitaram seus laços com os cidadãos.
O artigo de Spencer (2008), portanto, constitui uma rica fonte, no âmbito da Biblioteconomia Internacional e Comparada, para a reflexão sobre uma das facetas do papel das bibliotecas e dos bibliotecários na tradição estadunidense. A partir dos estudos desenvolvidos pelo autor é possível observar claramente como o contexto – nesse caso, o de grande potência ativa na Segunda Guerra Mundial – conduz ao desenvolvimento de características particulares que moldam o perfil das bibliotecas. É claro, a participação de bibliotecas na guerra não foi uma exclusividade dos Estados Unidos; o próprio autor aponta que os norte-americanos encontraram nas experiências britânicas uma referência para a atuação bibliotecária em seus esforços de defesa civil. O ponto é que o legado de boa vontade, suporte e relevância perante as comunidades locais alcançado pelos bibliotecários norte-americanos durante esse período (SPENCER, 2008, p. 141) deve ser compreendido a partir da observação e análise de um fator social, político e histórico que foi a participação norte-americana no conflito mundial. Certamente um mergulho a fundo nas ações desenvolvidas pelas bibliotecas norte-americanas nesse período pode auxiliar na elucidação de particularidades dessas instituições e marcar contrastes com outras experiências bibliotecárias e biblioteconômicas mundo afora.
SPENCER, Brett. Preparing for an air attack: libraries and american air raid defense during World War II. Libraries & the Cultural Record, v. 43, n. 2, 2008, p. 125-147.